Em menos de seis meses, três
cafeterias foram abertas em Petrolina, e isso foi comemorado, pois a classe
intelectual e cult da cidade, enfim, passou a ter espaços de discussão e encontro
condizentes com sua condição de elite cultural. Os cafés estão cheios de
pessoas discutindo arte, política, ideias pós-modernas. Os nomes de Foucault,
Deleuze, Nietzsche enfim encontraram espaços onde são discutidos e
reverenciados em alta voz. O café têm esse efeito sobre a elite, marca uma
sensação de particularidade. A ironia disso tudo é que essa bebida tão querida
por intelectuais é a mais encontrada nas casas mais humildes. Depois da água, o
café é o segundo oferecimento mais comum na população mais pobre. O café tem
esses paradoxos guardados em si mesmo, e sua história comprova que ele tanto
agradou a humildes nativos de tribos africanas como iluminados pensadores e
músicos, a exemplo de Bach.
O café faz parte da nossa vida,
tanto individual quanto coletiva. É uma marca da civilização ocidental e, portanto, temos a impressão de que a humanidade sempre teve essa relação de consumo com o
café e isso é um equívoco. Dos nossos alimentos mais consumidos o café é um dos
mais novos. Seu uso tem apenas 1500 anos, sendo uma bebida descoberta e
popularizada no fim da Idade Média.
Oriunda da África, esta bebida
teve seu percurso até aqui marcado por disputas de poder que envolveram roubos,
mentiras e trapaças pela posse da planta produtora. Sendo hoje o segundo
produto mais comercializado e consumido no mundo, é difícil imaginar que há 300 anos o único jeito de conseguir café
era roubando, ou mentindo, ou contrabandeado; a planta era uma raridade, um
verdadeiro ouro negro.
Evidências apontam a Etiópia como
o primeiro lugar a registrar a existência do café. Em uma comunidade rural um
nativo percebeu que animais mastigavam uma planta e ficavam agitados, pegou a
planta mascou e ficou cheio de energia, levou a um curandeiro que o
inspecionou, constatou sua potencialidade energética e introduziu a bebida em
rituais e na cultura local; o conhecimento se espalhou naquela região e foi
conhecido pelos árabes que ali habitam ou transitavam, que logo se apoderaram do manejo do plantio, do uso
dos grãos e preparação da bebida . Anos
se passaram e o grão chegou ao Oriente Médio, especificamente à região de Kafa, e
foi pela primeira vez cultivado e, tornando-se essa bebida que faz parte do nosso
cotidiano. No Iêmen, tivemos o primeiro cultivo da planta, a descoberta que o
grão moído e diluído em água tinha um cheiro fabuloso. Por 500 anos o café foi
parte do mundo árabe exclusivamente, haviam cafeterias em Meca e outros grandes
centros. Até que Baba Budan, um curandeiro indiano, contrabandeou grãos de café de Meca para a Índia, onde foram
cultivados, e hoje ele é uma lenda naquele país.
Entre os muçulmanos a bebida foi
logo difundida quando se descobriu suas propriedades mágicas de energizar o homem que ingeria e nessa mística o café
chegou à Europa justo no momento das violentas disputas de terra e interesses
entre árabes e europeus, a bebida foi logo associada ao islamismo e suas
práticas até então incompreensíveis para o imaginário cristão. Até o século XVI
era proibido tomar café na Europa em razão de sua associação ao islamismo e da
briga comercial que genoveses e venezianos tinham com os muçulmanos e isto dificultou o acesso e a difusão da bebida na
península. Depois de muitas controvérsias o papa Clemente VIII aprovou o uso do
café entre os cristãos (os ricos, é claro, pois o acesso à bebida era caríssimo).
Uma cultura criou-se em torno da
bebida preciosa, os intelectuais europeus introduziram em seu cotidiano o
consumo de cafeína. Na Alemanha serviam café em reuniões de música clássica e a
aceitação era tão grande que Bach escreveu a Cantata ao Café, para se tocada nos estabelecimentos onde o
café era vendido - as Kaffehaus, cada vez mais populares nos países europeus. A
Holanda aproveitou-se dessa febre e se apropriou das técnicas de cultivo e
preparação tanto da plantação quanto da bebida em si e se tornou o detentor
mundial do direito à comercialização do café.
Numa dessas impressionantes
reviravoltas históricas, um único sujeito conseguiu roubar uma planta de café
da estufa de Versalhes, o palácio francês, embarcar num navio rumo a América e
começar no Caribe uma das maiores culturas de café já vista. É importante
lembrar que as terras européias não eram apropriadas para o cultivo do café e
na América as condições climáticas se mostraram ideais. Em 1727 um outro ato
individual de trapaça e mentira, um oficial brasileiro roubou uma muda de café
na Guiana Francesa e disso o governo brasileiro pode fazer parte do rol dos
afortunados produtores de café.
A história do café no Brasil determina
os rumos da história e da distribuição de riqueza nacional. Chegou ao país para ser cultivada numa região
ainda obscura e sem grande prestígio nacional (região sudeste) depois que o
Nordeste e Minas estavam esgotados pelos domínios e o desgaste do açúcar e do
ouro, o café se tornou o termômetro da economia do Brasil.
O Brasil se tornou o maior
produtor de café do mundo - título que ainda mantêm. Às libertações mais
significativas à época da assinatura da Lei Áurea vieram das regiões
cafeicultoras. A necessidade de mão de obra européia para trabalhar no cultivo
do café, determinou a povoação de algumas regiões do sul e sudeste do Brasil. O
poder da região produtora de café se tornou tão forte que até hoje São Paulo é
a cidade mais importante do nosso país. A primeira universidade do Brasil -
Faculdade de Direito, foi instalada em São Paulo para atender os filhos dos
cafeicultores. A política brasileira desde então girou em torno das
necessidades da elite cafeeira do nosso país. Os presidentes da primeira fase
da República eram todos ligados ao Café. E por conseqüência a popularização
dessa bebida foi necessária. Nem sempre houve o hábito de tomarmos café a cada
manhã que acordamos, esse foi um costume implantando pela necessidade do
mercado, de igual modo a mistura de café e açúcar foi uma necessidade
brasileira de manter alto o consumo de ambos os produtos.
E assim, o café passou a fazer
parte de nosso imaginário, nas casa mais simples misturado com açúcar das
usinas e nas cafeterias para intelectuais com uma série de outros ingredientes,
sabores e comportamentos.
Ailma Cintia Barros é formada em História pela UPE e em Psicologia
pela UNIVASF e está aqui para te fazer perceber que a História está difundida
em tudo na nossa vida, até as coisas mais pequenas podem nos servir para
entender as trajetórias históricas mais globais.
parabéns pelo texto.
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