29.4.14

1500 anos numa xícara de 50 ml


Em menos de seis meses, três cafeterias foram abertas em Petrolina, e isso foi comemorado, pois a classe intelectual e cult da cidade, enfim, passou a ter espaços de discussão e encontro condizentes com sua condição de elite cultural. Os cafés estão cheios de pessoas discutindo arte, política, ideias pós-modernas. Os nomes de Foucault, Deleuze, Nietzsche enfim encontraram espaços onde são discutidos e reverenciados em alta voz. O café têm esse efeito sobre a elite, marca uma sensação de particularidade. A ironia disso tudo é que essa bebida tão querida por intelectuais é a mais encontrada nas casas mais humildes. Depois da água, o café é o segundo oferecimento mais comum na população mais pobre. O café tem esses paradoxos guardados em si mesmo, e sua história comprova que ele tanto agradou a humildes nativos de tribos africanas como iluminados pensadores e músicos, a exemplo de Bach.

O café faz parte da nossa vida, tanto individual quanto coletiva. É uma marca da civilização ocidental e, portanto, temos a impressão de que a humanidade sempre teve essa relação de consumo com o café e isso é um equívoco. Dos nossos alimentos mais consumidos o café é um dos mais novos. Seu uso tem apenas 1500 anos, sendo uma bebida descoberta e popularizada no fim da Idade Média.

Oriunda da África, esta bebida teve seu percurso até aqui marcado por disputas de poder que envolveram roubos, mentiras e trapaças pela posse da planta produtora. Sendo hoje o segundo produto mais comercializado e consumido no mundo, é difícil imaginar que  há 300 anos o único jeito de conseguir café era roubando, ou mentindo, ou contrabandeado; a planta era uma raridade, um verdadeiro ouro negro.

Evidências apontam a Etiópia como o primeiro lugar a registrar a existência do café. Em uma comunidade rural um nativo percebeu que animais mastigavam uma planta e ficavam agitados, pegou a planta mascou e ficou cheio de energia, levou a um curandeiro que o inspecionou, constatou sua potencialidade energética e introduziu a bebida em rituais e na cultura local; o conhecimento se espalhou naquela região e foi conhecido pelos árabes que ali habitam ou transitavam, que logo se apoderaram do manejo do plantio, do uso dos grãos e preparação da bebida . Anos se passaram e o grão chegou ao Oriente Médio, especificamente à região de Kafa, e foi pela primeira vez cultivado e, tornando-se essa bebida que faz parte do nosso cotidiano. No Iêmen, tivemos o primeiro cultivo da planta, a descoberta que o grão moído e diluído em água tinha um cheiro fabuloso. Por 500 anos o café foi parte do mundo árabe exclusivamente, haviam cafeterias em Meca e outros grandes centros. Até que Baba Budan, um curandeiro indiano, contrabandeou grãos de café de Meca para a Índia, onde foram cultivados, e hoje ele é uma lenda naquele país.

Entre os muçulmanos a bebida foi logo difundida quando se descobriu suas propriedades mágicas de energizar  o homem que ingeria e nessa mística o café chegou à Europa justo no momento das violentas disputas de terra e interesses entre árabes e europeus, a bebida foi logo associada ao islamismo e suas práticas até então incompreensíveis para o imaginário cristão. Até o século XVI era proibido tomar café na Europa em razão de sua associação ao islamismo e da briga comercial que genoveses e venezianos tinham com os muçulmanos e isto  dificultou o acesso e a difusão da bebida na península. Depois de muitas controvérsias o papa Clemente VIII aprovou o uso do café entre os cristãos (os ricos, é claro, pois o acesso à bebida era caríssimo).

Uma cultura criou-se em torno da bebida preciosa, os intelectuais europeus introduziram em seu cotidiano o consumo de cafeína. Na Alemanha serviam café em reuniões de música clássica e a aceitação era tão grande que Bach escreveu a Cantata ao Café, para se tocada nos estabelecimentos onde o café era vendido - as Kaffehaus, cada vez mais populares nos países europeus. A Holanda aproveitou-se dessa febre e se apropriou das técnicas de cultivo e preparação tanto da plantação quanto da bebida em si e se tornou o detentor mundial do direito à comercialização do café.

Numa dessas impressionantes reviravoltas históricas, um único sujeito conseguiu roubar uma planta de café da estufa de Versalhes, o palácio francês, embarcar num navio rumo a América e começar no Caribe uma das maiores culturas de café já vista. É importante lembrar que as terras européias não eram apropriadas para o cultivo do café e na América as condições climáticas se mostraram ideais. Em 1727 um outro ato individual de trapaça e mentira, um oficial brasileiro roubou uma muda de café na Guiana Francesa e disso o governo brasileiro pode fazer parte do rol dos afortunados produtores de café.

A história do café no Brasil determina os rumos da história e da distribuição de riqueza nacional.  Chegou ao país para ser cultivada numa região ainda obscura e sem grande prestígio nacional (região sudeste) depois que o Nordeste e Minas estavam esgotados pelos domínios e o desgaste do açúcar e do ouro, o café se tornou o termômetro da economia do Brasil.

O Brasil se tornou o maior produtor de café do mundo - título que ainda mantêm. Às libertações mais significativas à época da assinatura da Lei Áurea vieram das regiões cafeicultoras. A necessidade de mão de obra européia para trabalhar no cultivo do café, determinou a povoação de algumas regiões do sul e sudeste do Brasil. O poder da região produtora de café se tornou tão forte que até hoje São Paulo é a cidade mais importante do nosso país. A primeira universidade do Brasil - Faculdade de Direito, foi instalada em São Paulo para atender os filhos dos cafeicultores. A política brasileira desde então girou em torno das necessidades da elite cafeeira do nosso país. Os presidentes da primeira fase da República eram todos ligados ao Café. E por conseqüência a popularização dessa bebida foi necessária. Nem sempre houve o hábito de tomarmos café a cada manhã que acordamos, esse foi um costume implantando pela necessidade do mercado, de igual modo a mistura de café e açúcar foi uma necessidade brasileira de manter alto o consumo de ambos os produtos.

E assim, o café passou a fazer parte de nosso imaginário, nas casa mais simples misturado com açúcar das usinas e nas cafeterias para intelectuais com uma série de outros ingredientes, sabores e comportamentos.

Ailma Cintia Barros é formada em História pela UPE e em Psicologia pela UNIVASF e está aqui para te fazer perceber que a História está difundida em tudo na nossa vida, até as coisas mais pequenas podem nos servir para entender as trajetórias históricas mais globais.


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