Por Eduardo Souza Lima
Padroeiro da Inglaterra, Geórgia, Lituânia, Sérvia, Montenegro e
Etiópia; das cidades de Londres, Barcelona, Gênova, Moscou, Beirute e Ilhéus;
dos escoteiros, da Cavalaria do Exército Brasileiro e do Corinthians, o santo
mais popular das faces da Terra e da Lua também é o mais pop.
São Jorge estampa camisetas, qual um Che Guevara celestial, foi
cantado em verso e prosa por Jorge Ben (em “Jorge de Capadócia”) e Iron Maiden
(“Flash of the Blade”), e até virou coadjuvante do desenho animado do herói
favorito da garotada, Ben Dez – como o Sir George da série Supremacia
alienígena. Venerado fervorosamente por milhões de fiéis das três grandes
vertentes do catolicismo (a Igreja Católica Apostólica Romana, a Cristã
Ortodoxa e a Comunhão Anglicana), também é um dos 14 santos auxiliares – que seriam
os mais tenazes intercessores divinos contra moléstias diversas.
No Brasil, além de disputar a preferência dos católicos com Nossa
Senhora Aparecida, ainda assume as formas de Ode, Ogum e Oxóssi na umbanda e no
candomblé. Apesar de todo esse prestígio, chegou a ser rebaixado, assim como
aconteceu com o ex-planeta Plutão: virou santo menor, de terceira categoria,
por causa de sua origem envolta em incertezas. Uma reforma promovida pelo papa
Paulo VI em 9 de maio de 1969, retirou do calendário litúrgico as comemorações
dedicadas a santos cujas vidas eram conhecidas somente por relatos
tradicionais, sem nenhuma documentação histórica. Coube a João Paulo II,
pontífice mais sensível aos clamores populares, não só reabilitá-lo, como
promovê-lo a arcanjo, no ano 2000. De lá para cá, a popularidade do Santo
Guerreiro só cresceu.
Segundo a tradição, Jorge teria nascido no ano de 275, na Capadócia
(região que hoje pertence à Turquia), filho de pais cristãos e abastados.
Depois da morte do pai soldado, no campo de batalha, mudou-se com a mãe para a
terra natal dela, Lida (ou Lod), na Palestina, onde se educou e entrou para o
exército romano, sendo rapidamente promovido a capitão. Há quem acredite que,
em verdade, Jorge teria nascido mesmo nessa cidade e que os primeiros
narradores da história do santo teriam confundido os registros do guerreiro com
a de um religioso conhecido, justamente, por Jorge da Capadócia, que viveu na
mesma época.
Aos 23 anos, já com o posto de tribuno militar, foi morar na Nicomédia
(atual Izmit, Turquia), então transformada em um dos centros administrativos do
império por Diocleciano, e foi incorporado à própria guarda pessoal do
tetrarca. Quando o imperador baixou um edito proibindo aos soldados romanos
professar a fé cristã e os obrigando a oferecer sacrifícios aos deuses romanos,
no início do que entrou para a história com o nome de Grande Perseguição, a
maior e mais sangrenta perpetrada contra a religião em franca expansão nos
territórios imperiais, Jorge não se conformou.
Segundo a tradição, durante a audiência no Senado que confirmaria o
decreto imperial, ele teria se negado a cumpri-lo, dizendo que os ídolos
adorados nos templos romanos eram falsos deuses. Diocleciano, que muito o
estimava, tentou fazê-lo mudar de ideia, oferecendo-lhe riquezas. Diante de sua
negativa, mandou torturá-lo. O suplício, porém, teria fortalecido ainda mais a
sua fé: sempre que era levado à presença de Diocleciano e este lhe pedia que
venerasse os deuses romanos, Jorge dizia: “Não, imperador! Eu sou servo de um
Deus vivo! Somente a ele eu temerei e adorarei”.
Mesmo contrariado, Diocleciano mandou degolá-lo, o que, segundo a
tradição, teria acontecido em 23 de abril de 303 – ou seja, quase dois meses
depois de 24 de fevereiro de 303, data em que foi publicado o primeiro edito de
perseguição aos cristãos, política adotada pelo tetrarca em busca de maior
unidade no interior do império. O edito determinava que todas as igrejas
dedicadas ao culto de Cristo fossem demolidas.
Os restos mortais do futuro santo foram transferidos para Lida, onde
mais tarde o imperador Constantino, que em 313 lançara o Edito de Milão,
ordenado que a fé cristã fosse livre e respeitada, fez erguer uma capela, que ajudou a disseminar a devoção ao mártir
pelo Oriente. No século seguinte, já existiam em Constantinopla, capital do
Império Romano do Oriente, cinco igrejas edificadas em sua memória; no Egito,
foram construídos 40 conventos dedicados a ele. As Cruzadas foram decisivas
para espalhar o culto do santo soldado pelo Ocidente.
Como outro herói mítico de origem romana, o rei Artur, Jorge também
teve sua história recontada em baladas medievais, o que ajudou a lançar mais
dúvidas sobre a sua real existência. Por isso, hoje é representado como um
cavaleiro de reluzente armadura. Nas canções de gesta, Jorge era filho de Lorde
Albert de Coventry, roubado ao nascer pela Dama do Bosque, depois de sua mãe
ter morrido durante o parto. Treinado para ser um guerreiro invencível, após
mil peripécias ele chega a Sylén, na Líbia. A cidade estava sitiada por um
terrível dragão, que exigia de seus moradores o sacrifício de uma donzela por
dia para não destruí-la. Jorge chega a tempo de matar o monstrengo com sua
lança e salvar Sabra, a filha do rei, com quem se casa e vive feliz para sempre
em sua Coventry natal.
Em outra versão, ele tem uma espada mágica chamada Ascalon e um cavalo
branco, e depois de abater o dragão ainda converte os moradores da cidade em
cristãos. A lenda do cavaleiro que matou um dragão já havia sido renegada no
século V por um concílio, mas resistiu e ganhou força no tempo das Cruzadas.
Inspirado nela, o rei da Inglaterra Ricardo Coração de Leão tomou São Jorge
como padroeiro e partiu para Jerusalém. No século XIII, o dia 23 de abril já
era celebrado naquele país, e em 1348 foi fundada a Ordem dos Cavaleiros de São
Jorge, por Eduardo III. Os ingleses acabaram por adotá-lo como padroeiro,
ornando sua bandeira com a cruz do santo. Aos poucos, seu culto se espalhou
pela Europa continental, principalmente por Alemanha (Frederico I, o Barba
Roxa, lhe dedicou uma ordem militar) e França (Santa Clotilde, mulher do rei
Clóvis I, o primeiro monarca católico franco, mandou erguer vários conventos e
igrejas em sua memória) e Catalunha, onde o seu dia, lá chamado San Jordi, é
celebrado desde o século XIV.
Diz-se que a devoção ao Santo Guerreiro chegou a Portugal nos
estandartes dos cruzados ingleses que ajudaram o primeiro rei do antigo
condado, Dom Afonso Henriques, a conquistar Lisboa aos mouros, em 1147. Mas
somente no século seguinte, no reinado de Dom Afonso IV, o grito de batalha
“São Jorge!” começou a ser usado no lugar do “Sant’Iago!”. Santo Dom Nuno
Álvares Pereira, um dos maiores heróis da história do país, creditava a ele a
vitória portuguesa na Batalha de Aljubarrota, em 1385, e no reinado de Dom João
I São Jorge finalmente substituiu Santiago como maior padroeiro de Portugal –
hoje, porém, a honraria cabe oficialmente a Nossa Senhora da Conceição. O culto
ao santo chegou ao Brasil tão logo desembarcaram aqui os portugueses – já em
1387, Dom João I decretara a obrigatoriedade do uso de sua imagem nas
procissões de Corpus Christi. Mas ele só se tornou tão popular no país com o
auxílio das religiões afro-brasileiras, por obra do sincretismo.
O catolicismo trazido pelos portugueses ao Brasil foi o da
Contrarreforma, que reabilitou antigos costumes e crendices medievais. Entre
essas práticas estava o culto dos santos. Enquanto na casa-grande a família
branca venerava os seus, nas senzalas, os negros faziam festa para seus deuses.
O convívio dos entes sagrados nas grandes fazendas, bem como a necessidade de
disfarçar os cultos aos de origem africana, levou a uma aproximação, quase uma
apropriação dos santos brancos pelos negros. Assim, Jesus e Oxalá se
unificaram; Santa Bárbara virou Iansã; São Jerônimo, Xangô; Nossa Senhora da
Conceição, Oxum etc. São Jorge assume vários mantos nas religiões
afro-brasileiras. No candomblé da Bahia é Oxóssi e Ode; na umbanda de Rio de
Janeiro, Recife e Porto Alegre, Ogum. Nas suas diferentes representações, o
Santo Guerreiro é invocado como protetor contra o demônio, as tentações e a
feitiçaria.
Reza a tradição, criada no Brasil, que as manchas da Lua seriam ele,
seu cavalo e sua espada, sempre em vigília para defender aqueles que rogam por
seu auxílio. Hoje, existem 26 paróquias dedicadas ao santo no Brasil, duas
delas no Rio de Janeiro, onde o dia 23 de abril é feriado desde 2008.
Fonte: http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens