Resistências escravas no Brasil.
A escravidão no Brasil é um universo
tão rico quanto desafiador para os postulantes e já profissionais em História.
Uma parcela considerável e competente de historiadores aventura-se sobre esta temática
nos proporcionando novos conhecimentos, olhares e perspectivas. O tema é de
suma importância para a construção da Historia do Brasil por tratar de um dos
principais traços da nossa “identidade” e salientar os mecanismos e práticas de
combate a um determinado sistema, que apesar de ser pertencente a outros países
e contextos, foi no Brasil, singular. O sistema escravocrata brasileiro possuiu
traços peculiares, e um deles foi a atuação dos escravos no campo da
resistência.
Resistir é negar ao sistema, é
tentar contornar, conseguir conviver, burlar, facilitar e não, tão somente,
romper os laços com o opressor e com o cativeiro. O modelo de tráfico e
alocação dos escravos oriundos deste processo proporcionou diferentes
ressonâncias no processo que levou desde as primeiras fugas, até a criação de
Quilombos. É preciso questionar então o conceito de liberdade e dissocia-lo do
termo “fuga”. A palavra em questão nos remete a rebeldia, desobediência e única
alternativa viável para o escravo que almejava melhores condições de vida.
A inserção do escravo enquanto força
de trabalho, foi inicialmente tradada como a única forma de atuação e cabendo
somente ao negro um lugar separado na estante da história, como se o escravo
apenas fosse usado para o trabalho cabendo a ele o papel de pouca (quase
nenhuma) relevância, uma ferramenta, que poderia depois ser colocado em seu
devido lugar, não participando de nenhuma relação ou transformação social. Segundo
Fernando Henrique Cardoso[1],
cabia aos escravos esta definição e eram assim tratados “como coisas, como
mercadorias, reguladas pelo processo econômico”.
Esse pensamento marca o que ficou
conhecido como a “Escola de São Paulo”, grupo de Historiadores e sociólogos
caracterizados pela crítica feita ao pensamento de Gilberto Freyre, quando o
mesmo vai enaltecer a condição do escravo como agente da miscigenação
brasileira. Para Freyre o traço principal em suas obras, mais precisamente em Casa grande & senzala é a não
negação do papel do escravo, enquanto agente histórico, o negro vai se misturar
ao branco, ao mulato e vai produzir uma nova perspectiva para os olhares mais
reacionários. O escravo vai criar o filho do senhor, vai fazer sexo com ele,
vai amar, vai odiar, vai brincar, vai influenciar, vai tomar condição (salvaguardando
as devidas proporções) de “gente”, mesmo sendo um servo e estando atrelado aos
devaneios e atitudes de seu dono.
Os primeiros traços de resistência
vão se estabelecer aí, na convivência. O escravo que não aceitava sua condição,
nem sempre enxergava na luta, na fuga ou na violência exacerbada o único viés
para sua liberdade. O que nos leva também a discutir o conceito de liberdade. O
que seria esta liberdade? Para onde iria este escravo liberto, forro por sua
própria destreza e trabalho árduo? Inseridos, desde seus pais, avós, no
contexto do cativeiro e da servidão, como para ele, a liberdade era vista? Será
que para o escravo todas as mazelas e durezas de uma vida servil acabariam com
a tão sonhada liberdade? Mudança de dono, fuga temporária para reivindicar
“direitos” ou “regalias”, alcoolismo, infanticídio, estas são algumas das
resistências e que nem sempre levavam a liberdade. O escravo não queria ser
escravo, mas se não o fosse, o que seria?
As resistências silenciosas vão dar
o tom das ações destes escravos, que sabidamente viam estas relações como sendo
mais benéficas do que o rompimento direto com o sistema. Para Carvalho[2]:
“a grande maioria dos escravos não
virou quilombola, nem suicida, caso contrário a instituição não teria durado
tanto tempo. Por esta razão, deve-se estudar as estratégias de resistência e
sobrevivência que não implicavam numa fuga para o mato, nem deixar
necessariamente a cidade. Fingir de forro pelas ruas, mudar de dono quando
achasse conveniente, arrumar alguém que lhe escondesse por algum tempo, são
algumas dessas alternativas visando contornar, não confrontar as imensas
restrições impostas pelo regime escravista.”
É válido salientar que os processos de
resistência fizeram parte de todo o processo que envolveu a questão da
escravidão no Brasil. A violência era a reguladora, para onde na maioria dos
casos isolados, se fazia presente como investidas contra Quilombos e na
desarticulação de possíveis levantes. O que mais se via era a negociação[3],
“No Brasil com em outras partes, os escravos negociaram mais do que lutaram
abertamente contra o sistema”.
Dentro de todo este cenário, jogos
de poder, relações de domínio o escravo procurava manter uma relação direta com
seus ancestrais, através da construção de um lar[4]
e na constituição da “família cativa” apresentava-se também uma forma de
resistência capaz de fazer frente ao sistema que de forma direta procurava
reduzir qualquer forma de convivência respeitosa. As representações de
resistência estendiam-se também para ações inusitadas e interessantes, como o
envio de flores por parte de um quilombo, para a Princesa Isabel na tentativa
de estabelecer uma relação de “respeito” para a condição por eles reivindicada.
A entrega simbólica das flores para
a Princesa representa fidedignamente a noção que se tinha a respeito da
condição do escravo, seja ela na condição de liberto ou de cativo. A atitude da
entrega deste presente significa dizer que a resistência poderia ser encarada
como um processo natural, haja vista que o momento ao qual este episódio está
inserido, já representava o limite das ações que dariam início ao processo de
assinatura da Lei Áurea, que enfim “libertara” os escravos. É preciso contar de
forma mais dinâmica a história das resistências escravas no Brasil, para que
possamos assumir uma nova postura, e não apenas reproduzir e caracterizar
resistência como violência, como fuga, como sinônimo de revolta e de Quilombo.
[1]
CARDOSO, Fernando H. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na
sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
P. 35.
[2]
CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no
Recife 1822-1850. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 1998.
[3]
SILVA, Eduardo; REIS, João José. Negociação e conflito: a resistência negra no
Brasil escravista. São Paulo: Companhia das letras, 1989.
[4]
SLENES, Robert W. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da
família escrava, Brasil Sudeste, século XIV. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1999.
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