1.5.14

Para a Princesa, uma flor

 Resistências escravas no Brasil.


A escravidão no Brasil é um universo tão rico quanto desafiador para os postulantes e já profissionais em História. Uma parcela considerável e competente de historiadores aventura-se sobre esta temática nos proporcionando novos conhecimentos, olhares e perspectivas. O tema é de suma importância para a construção da Historia do Brasil por tratar de um dos principais traços da nossa “identidade” e salientar os mecanismos e práticas de combate a um determinado sistema, que apesar de ser pertencente a outros países e contextos, foi no Brasil, singular. O sistema escravocrata brasileiro possuiu traços peculiares, e um deles foi a atuação dos escravos no campo da resistência.

Resistir é negar ao sistema, é tentar contornar, conseguir conviver, burlar, facilitar e não, tão somente, romper os laços com o opressor e com o cativeiro. O modelo de tráfico e alocação dos escravos oriundos deste processo proporcionou diferentes ressonâncias no processo que levou desde as primeiras fugas, até a criação de Quilombos. É preciso questionar então o conceito de liberdade e dissocia-lo do termo “fuga”. A palavra em questão nos remete a rebeldia, desobediência e única alternativa viável para o escravo que almejava melhores condições de vida.

A inserção do escravo enquanto força de trabalho, foi inicialmente tradada como a única forma de atuação e cabendo somente ao negro um lugar separado na estante da história, como se o escravo apenas fosse usado para o trabalho cabendo a ele o papel de pouca (quase nenhuma) relevância, uma ferramenta, que poderia depois ser colocado em seu devido lugar, não participando de nenhuma relação ou transformação social. Segundo Fernando Henrique Cardoso[1], cabia aos escravos esta definição e eram assim tratados “como coisas, como mercadorias, reguladas pelo processo econômico”.

Esse pensamento marca o que ficou conhecido como a “Escola de São Paulo”, grupo de Historiadores e sociólogos caracterizados pela crítica feita ao pensamento de Gilberto Freyre, quando o mesmo vai enaltecer a condição do escravo como agente da miscigenação brasileira. Para Freyre o traço principal em suas obras, mais precisamente em Casa grande & senzala é a não negação do papel do escravo, enquanto agente histórico, o negro vai se misturar ao branco, ao mulato e vai produzir uma nova perspectiva para os olhares mais reacionários. O escravo vai criar o filho do senhor, vai fazer sexo com ele, vai amar, vai odiar, vai brincar, vai influenciar, vai tomar condição (salvaguardando as devidas proporções) de “gente”, mesmo sendo um servo e estando atrelado aos devaneios e atitudes de seu dono.

Os primeiros traços de resistência vão se estabelecer aí, na convivência. O escravo que não aceitava sua condição, nem sempre enxergava na luta, na fuga ou na violência exacerbada o único viés para sua liberdade. O que nos leva também a discutir o conceito de liberdade. O que seria esta liberdade? Para onde iria este escravo liberto, forro por sua própria destreza e trabalho árduo? Inseridos, desde seus pais, avós, no contexto do cativeiro e da servidão, como para ele, a liberdade era vista? Será que para o escravo todas as mazelas e durezas de uma vida servil acabariam com a tão sonhada liberdade? Mudança de dono, fuga temporária para reivindicar “direitos” ou “regalias”, alcoolismo, infanticídio, estas são algumas das resistências e que nem sempre levavam a liberdade. O escravo não queria ser escravo, mas se não o fosse, o que seria?

As resistências silenciosas vão dar o tom das ações destes escravos, que sabidamente viam estas relações como sendo mais benéficas do que o rompimento direto com o sistema. Para Carvalho[2]:

“a grande maioria dos escravos não virou quilombola, nem suicida, caso contrário a instituição não teria durado tanto tempo. Por esta razão, deve-se estudar as estratégias de resistência e sobrevivência que não implicavam numa fuga para o mato, nem deixar necessariamente a cidade. Fingir de forro pelas ruas, mudar de dono quando achasse conveniente, arrumar alguém que lhe escondesse por algum tempo, são algumas dessas alternativas visando contornar, não confrontar as imensas restrições impostas pelo regime escravista.”

 É válido salientar que os processos de resistência fizeram parte de todo o processo que envolveu a questão da escravidão no Brasil. A violência era a reguladora, para onde na maioria dos casos isolados, se fazia presente como investidas contra Quilombos e na desarticulação de possíveis levantes. O que mais se via era a negociação[3], “No Brasil com em outras partes, os escravos negociaram mais do que lutaram abertamente contra o sistema”.

Dentro de todo este cenário, jogos de poder, relações de domínio o escravo procurava manter uma relação direta com seus ancestrais, através da construção de um lar[4] e na constituição da “família cativa” apresentava-se também uma forma de resistência capaz de fazer frente ao sistema que de forma direta procurava reduzir qualquer forma de convivência respeitosa. As representações de resistência estendiam-se também para ações inusitadas e interessantes, como o envio de flores por parte de um quilombo, para a Princesa Isabel na tentativa de estabelecer uma relação de “respeito” para a condição por eles reivindicada.

A entrega simbólica das flores para a Princesa representa fidedignamente a noção que se tinha a respeito da condição do escravo, seja ela na condição de liberto ou de cativo. A atitude da entrega deste presente significa dizer que a resistência poderia ser encarada como um processo natural, haja vista que o momento ao qual este episódio está inserido, já representava o limite das ações que dariam início ao processo de assinatura da Lei Áurea, que enfim “libertara” os escravos. É preciso contar de forma mais dinâmica a história das resistências escravas no Brasil, para que possamos assumir uma nova postura, e não apenas reproduzir e caracterizar resistência como violência, como fuga, como sinônimo de revolta e de Quilombo.





[1] CARDOSO, Fernando H. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. P. 35.
[2] CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife 1822-1850. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 1998.
[3] SILVA, Eduardo; REIS, João José. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das letras, 1989.
[4] SLENES, Robert W. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil Sudeste, século XIV. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

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