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19.5.14

Amazonas quilombolas

Sabe a lenda grega de mulheres amazonas que viviam em um reino e eram habilidosas guerreiras? Então, vamos fazer uma viagem rápida,  quero te mostrar a versão negra-sertajena-nordestina-quilombola!



O legado de luta e resistência contra o modelo escravocrata que existiu no Brasil por 300 anos foi sempre uma marca dos territórios quilombolas. Aprende-se desde cedo nas escolas que o quilombo era um espaço de refúgio para os negros fugidos das fazendas no Brasil afora. As professoras do ensino fundamental I inclusive contam em detalhes a trajetória de Zumbi e sua vida no quilombo. Assim, temos uma legislação que reconhece como legítima essa resistência e garante aos descentes de quilombos a posse das terras por eles ocupada. Em várias partes do Brasil a luta de comunidades quilombolas pela posse da terra é notória. Junto com os indígenas os povos quilombolas frequentemente enfrentam a disputa de cada pedaço de chão com grandes latifúndios e em algumas situações tem ganhado. 
A luta quilombola em termos materiais se tornou a luta do povo negro pelo reconhecimento aos crimes a que foram submetidos e a equiparação de direitos, especialmente o direito a posse da terra. Nesse sentido alguns grupos que não tem um histórico de resistência escrava são considerados quilombolas pela afinidade étnica e pela demanda à parte que lhe cabe neste latifúndio. Ou ainda há identidade étnica posta e aceita. 
Pernambuco tem reconhecidos ao longo do seu território  120 comunidades quilombolas, um deles, Conceição das Crioulas se encaixa no perfil peculiar de território quilombola que não viveu um processo de resistência escravocrata. O mais interessante é que a representação estadual e as maiores conquistas estão com este povo que vive a 42 km de Salgueiro bem no meio do sertão central de Pernambuco.
Pernambuco é um estado que se destaca pela história de resistência à escravidão na formação de quilombos, inclusive porque foi um dos maiores produtores de açúcar na época da colonização nos séculos passados. Foi em uma região situada na então Capitania de Pernambuco que, entre o final do século XVI e início do século XVII, o famoso quilombo de Palmares se formou. Posteriormente, já no século XIX, essa província foi palco da formação do quilombo de Catucá, dessa vez em região localizada na Zona da Mata próxima à capital. 
A luta dos quilombolas do estado de Pernambuco conta com a forte presença de lideranças femininas e está caminhando cada vez para o sertão. Em Conceição das Crioulas foram mulheres que inicialmente se articularam para dar voz às reivindicações das comunidades. E em sua história Conceição apresenta característica tão peculiares que de modo algum desabilitam para a luta. 
As narrativas e construção histórica em Conceição das Crioulas lembram a historiografia africana, onde datas não são precisas e sentimentos são considerados prioritários, o que ao meu ver enriquece profundamente a construção histórica local pois compromete os sujeitos narradores como também participantes desta história.
Conceição das Crioulas é um território quilombola que luta pelo reconhecimento, posse da terra e melhoria de qualidade de vida. Segundo a tradição local, a comunidade foi fundada por seis crioulas que compraram as terras com dinheiro do próprio esforço ainda no "tempo dos reis". O único ano de fato marcado para os remanescentes da seis crioulas é 1802, data da compra e registro das terras, há escritos também na cidade de Flores com informações mais precisas sobre a transação. As crioulas compraram a terra após juntarem dinheiro trabalhando em lavouras de algodão. O esforço e a  ajuda da padroeira senhora Conceição, fez surgir a comunidade, que ao contrário de outros grupos quilombolas não foi o resultado de resistência e sim de uma transação comercial possível graças ao empreendimento das seis crioulas (uma delas, a Francisca, é símbolo do movimento em Conceição e está estampada em camisas, paredes e virou até boneca!). 
O mito da fundação de Conceição das Crioulas é permeado por uma história de liderança. Excepcionalmente, uma liderança de mulheres, "as seis crioulas". Conversando com Dona Generosa ou qualquer outra liderança mais antiga temos o retrato de uma comunidade que foi criada por mulheres fortes e resistentes, que, desafiando os padrões sociais da sua época, exerceram grande influência sobre seu grupo, na coordenação dos trabalhos, no plantio e colheita do algodão, no firme propósito de adquirirem a posse legal da terra, através da compra. "Em outros momentos da história de Conceição, especificamente quando aquelas pessoas começaram a ser expropriadas por outras, vindas de fora, atraídas talvez pela qualidade do solo propício ao plantio de algodão e à criação de gado, também foram as mulheres que se destacaram na luta pela recuperação daquelas terras. E hoje, na luta pela construção da identidade étnica e pela terra, são essas mulheres negras: trabalhadoras rurais, professoras, enfermeiras, artesãs e outras que estão no comando". 

Para saber mais sobre a história de Conceição, leia "Conceição das Crioulas: terra, mulher e política" de Maria Jorge dos Santos Leite ou faça uma visita ao território, que é no meio do caminho entre Cabrobó e Salgueiro aqui no sertão de Pernambuco. Acho que  a visita vai valer a pena.

29.4.14

1500 anos numa xícara de 50 ml


Em menos de seis meses, três cafeterias foram abertas em Petrolina, e isso foi comemorado, pois a classe intelectual e cult da cidade, enfim, passou a ter espaços de discussão e encontro condizentes com sua condição de elite cultural. Os cafés estão cheios de pessoas discutindo arte, política, ideias pós-modernas. Os nomes de Foucault, Deleuze, Nietzsche enfim encontraram espaços onde são discutidos e reverenciados em alta voz. O café têm esse efeito sobre a elite, marca uma sensação de particularidade. A ironia disso tudo é que essa bebida tão querida por intelectuais é a mais encontrada nas casas mais humildes. Depois da água, o café é o segundo oferecimento mais comum na população mais pobre. O café tem esses paradoxos guardados em si mesmo, e sua história comprova que ele tanto agradou a humildes nativos de tribos africanas como iluminados pensadores e músicos, a exemplo de Bach.

O café faz parte da nossa vida, tanto individual quanto coletiva. É uma marca da civilização ocidental e, portanto, temos a impressão de que a humanidade sempre teve essa relação de consumo com o café e isso é um equívoco. Dos nossos alimentos mais consumidos o café é um dos mais novos. Seu uso tem apenas 1500 anos, sendo uma bebida descoberta e popularizada no fim da Idade Média.

Oriunda da África, esta bebida teve seu percurso até aqui marcado por disputas de poder que envolveram roubos, mentiras e trapaças pela posse da planta produtora. Sendo hoje o segundo produto mais comercializado e consumido no mundo, é difícil imaginar que  há 300 anos o único jeito de conseguir café era roubando, ou mentindo, ou contrabandeado; a planta era uma raridade, um verdadeiro ouro negro.

Evidências apontam a Etiópia como o primeiro lugar a registrar a existência do café. Em uma comunidade rural um nativo percebeu que animais mastigavam uma planta e ficavam agitados, pegou a planta mascou e ficou cheio de energia, levou a um curandeiro que o inspecionou, constatou sua potencialidade energética e introduziu a bebida em rituais e na cultura local; o conhecimento se espalhou naquela região e foi conhecido pelos árabes que ali habitam ou transitavam, que logo se apoderaram do manejo do plantio, do uso dos grãos e preparação da bebida . Anos se passaram e o grão chegou ao Oriente Médio, especificamente à região de Kafa, e foi pela primeira vez cultivado e, tornando-se essa bebida que faz parte do nosso cotidiano. No Iêmen, tivemos o primeiro cultivo da planta, a descoberta que o grão moído e diluído em água tinha um cheiro fabuloso. Por 500 anos o café foi parte do mundo árabe exclusivamente, haviam cafeterias em Meca e outros grandes centros. Até que Baba Budan, um curandeiro indiano, contrabandeou grãos de café de Meca para a Índia, onde foram cultivados, e hoje ele é uma lenda naquele país.

Entre os muçulmanos a bebida foi logo difundida quando se descobriu suas propriedades mágicas de energizar  o homem que ingeria e nessa mística o café chegou à Europa justo no momento das violentas disputas de terra e interesses entre árabes e europeus, a bebida foi logo associada ao islamismo e suas práticas até então incompreensíveis para o imaginário cristão. Até o século XVI era proibido tomar café na Europa em razão de sua associação ao islamismo e da briga comercial que genoveses e venezianos tinham com os muçulmanos e isto  dificultou o acesso e a difusão da bebida na península. Depois de muitas controvérsias o papa Clemente VIII aprovou o uso do café entre os cristãos (os ricos, é claro, pois o acesso à bebida era caríssimo).

Uma cultura criou-se em torno da bebida preciosa, os intelectuais europeus introduziram em seu cotidiano o consumo de cafeína. Na Alemanha serviam café em reuniões de música clássica e a aceitação era tão grande que Bach escreveu a Cantata ao Café, para se tocada nos estabelecimentos onde o café era vendido - as Kaffehaus, cada vez mais populares nos países europeus. A Holanda aproveitou-se dessa febre e se apropriou das técnicas de cultivo e preparação tanto da plantação quanto da bebida em si e se tornou o detentor mundial do direito à comercialização do café.

Numa dessas impressionantes reviravoltas históricas, um único sujeito conseguiu roubar uma planta de café da estufa de Versalhes, o palácio francês, embarcar num navio rumo a América e começar no Caribe uma das maiores culturas de café já vista. É importante lembrar que as terras européias não eram apropriadas para o cultivo do café e na América as condições climáticas se mostraram ideais. Em 1727 um outro ato individual de trapaça e mentira, um oficial brasileiro roubou uma muda de café na Guiana Francesa e disso o governo brasileiro pode fazer parte do rol dos afortunados produtores de café.

A história do café no Brasil determina os rumos da história e da distribuição de riqueza nacional.  Chegou ao país para ser cultivada numa região ainda obscura e sem grande prestígio nacional (região sudeste) depois que o Nordeste e Minas estavam esgotados pelos domínios e o desgaste do açúcar e do ouro, o café se tornou o termômetro da economia do Brasil.

O Brasil se tornou o maior produtor de café do mundo - título que ainda mantêm. Às libertações mais significativas à época da assinatura da Lei Áurea vieram das regiões cafeicultoras. A necessidade de mão de obra européia para trabalhar no cultivo do café, determinou a povoação de algumas regiões do sul e sudeste do Brasil. O poder da região produtora de café se tornou tão forte que até hoje São Paulo é a cidade mais importante do nosso país. A primeira universidade do Brasil - Faculdade de Direito, foi instalada em São Paulo para atender os filhos dos cafeicultores. A política brasileira desde então girou em torno das necessidades da elite cafeeira do nosso país. Os presidentes da primeira fase da República eram todos ligados ao Café. E por conseqüência a popularização dessa bebida foi necessária. Nem sempre houve o hábito de tomarmos café a cada manhã que acordamos, esse foi um costume implantando pela necessidade do mercado, de igual modo a mistura de café e açúcar foi uma necessidade brasileira de manter alto o consumo de ambos os produtos.

E assim, o café passou a fazer parte de nosso imaginário, nas casa mais simples misturado com açúcar das usinas e nas cafeterias para intelectuais com uma série de outros ingredientes, sabores e comportamentos.

Ailma Cintia Barros é formada em História pela UPE e em Psicologia pela UNIVASF e está aqui para te fazer perceber que a História está difundida em tudo na nossa vida, até as coisas mais pequenas podem nos servir para entender as trajetórias históricas mais globais.


 
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